terça-feira, 30 de junho de 2015

AS CORES DOS PÁSSAROS

 Rouxinol 

Estando sua obra praticamente concluída, Deus foi, com os anjos, fazer a vistoria. Estava tudo uma beleza: as montanhas, os rios, os lagos, as árvores... As flores! Ah, que cores, que perfumes!

Mas havia um detalhe que destoava do resto. É que os pássaros, apesar de terem tamanhos variados e asas diferentes, eram iguais numa coisa: todos eram da mesma cor, uma marronzinho, assim, sem graça, sem definição, nem claro nem escuro, uma cor sem nenhum cuidado.

E Deus falou para os anjos:

- Estes passarinhos... Eles não estão combinando com o resto da paisagem... Poderíamos dar um colorido a eles. O que vocês acham?

Os anjos concordaram imediatamente.

Gabriel encarregou-se de avisar a todos que, tal dia, em tal hora, deveriam comparecer para o trabalho de acabamento. No dia e na hora marcada, Deus chegou acompanhado de Gabriel. Sua paleta de cores era deslumbrante, com cores que ele inventara especialmente para a ocasião.

Gabriel começava a chamar os pássaros, quando uma gralha brincalhona lhe roubou a lista, e sem querer, a rasgou. E agora, como fazer? Mas eram tatos pássaros... Certamente não faltaria nenhum. Os pássaros colocaram-se em fila, e o trabalho começou.

A primeira da fila era a arara. Quando viu a paleta, a arara não se conteve:

- Eu quero um pouco deste azul, um pouco deste amarelo, deste vermelho, deste verde... Tudo... Quero muito de tudo!

Deus fez como ela quis. E ela saiu dali chamando a atenção de todos.

Quando o pássaro-preto, que ainda não era preto, viu aquilo, disse:

- Ah, isso não. Isso eu não quero! Prefiro algo mais sóbrio: um preto luminoso.

E Deus atendeu o seu pedido.

E vieram os outros pássaros: beija-flores, colibris, periquitos...

O canarinho, todo entusiasmado, logo foi dizendo:

- Ai, adora amarelo! Quero tudo amarelo!

E, no final do dia, quase todos os pássaros já estavam pintados.

A saíra-de-sete-cores, vendo que já não restava muita tinha, esfregou-se na paleta. Saiu toda pintada, e é por isso que tem esse nome.

Deus já organizava os pincéis para voltar para casa, quando viu o rouxinol, chegando apressado.

- Ah, desculpe-me o atraso, mas fui o último a ser avisado e sou o que mora mais longe... Também quero ser pintado.

Mas não havia mais tinta na paleta. Nada, nadinha!

- Ah, mas e eu? Eu vou ficar feio...

Deus olhou para a paleta, olhou os pincéis e viu que restara apenas uma pequena gota de dourado. Pediu então ao rouxinol que pousasse no seu dedo e abrisse o bico. E, com a gotinha de dourado, pintou a garganta do rouxinol.

“Ah, não”, pensou o rouxinol. “Na garganta, ninguém vai ver! Eu continuo feio.” Mas como não podia reclamar com o Senhor Deus, foi-se embora, decepcionado. E ficou amuado, num galho escondido, vendo aquela revoada de pássaros coloridos. Porém, quando abriu o bico, o canto que saiu de sua garganta era inigualável. Era ouro puro, e todos pararam para ouvi-lo. 


QUANDO A NOITE REINAVA NA TERRA


Mia Couto
“Antigamente, não havia senão a noite e Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão lento no infinito firmamento!
Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela com ganância de ser maior que todas as outras. Essa estrela chamava-se Sol e cedo se apropriou dos pastos celestiais, expulsando para longe as outras estrelas que começaram a definhar.
Pela primeira vez houve estrelas que penaram e, magrinhas, foram engolidas pelo escuro. Mais e mais o Sol ostentava grandeza, vaidoso dos seus domínios e do seu nome tão masculino. Ele, então, se intitulou patrão de todos os astros, assumindo arrogâncias de centro do Universo. Não tardou a proclamar que ele é que tinha criado Deus.
O que sucedeu, na verdade, é que, com o Sol, assim soberano e imenso, tinha nascido o Dia. A Noite só se atrevia a aproximar-se quando o Sol, cansado, se ia deitar. Com o Dia, os homens esqueceram-se dos tempos infinitos em que todas as estrelas brilhavam de igual felicidade. E esqueceram a lição da Noite que sempre tinha sido rainha sem nunca ter que reinar.”

MIA COUTO, no livro  “A confissão da leoa